terça-feira, 26 de outubro de 2010

Homem

"As feias que me perdoem, mas a beleza é fundamental."
Receita de Mulher - Vinícius de Moraes

 Havia sido elogiado. E havia sido criticado, também, embora nunca se preocupara com isso. Mas vira.
 Sim, era bonito. E sabia . Além do mais, gostava. Diziam por aí que Narciso acha feio o que não é espelho. Uma grande mentira, oras. Vira e pensara que elas eram belas, com suas formas consagradas pelo tempo. Éclogas corporais. Sonetos faciais. E todo o restante.
 Achava-as realmente belas? Ou era apenas uma auto-valorização? Bem, não sabia. Não necessitava saber, aliás, desde que fossem realizadas as mostras obrigatórias diárias. Dose diária de nutrição para os olhos dos outros. Estava fazendo o favor secular sempre exigido pela maioria.
 E vira. A imagem clássica, naquele momento, sem o sentido religioso o qual a massa conhece e julga ser correto. A pomba com  o ramo de oliveira. Naquele momento sabia a interpretação correta, aquela vinda da antiguidade. E vira.
 Fora gerado a partir de conceitos idealizados pelo tempo. Não eram simplesmente Afrodites e Dafnes que o circundavam. Eram (ou deveriam) ser mais. Haveriam Penélopes e Cassandras também. Haveriam mais que simples ânforas.
 Mas, sabia. Não adiantaria estarem repletas, tampouco. Se fosse apenas isso, estaria sendo hipócrita consigo mesmo. Ainda era necessário o externo. Era preciso aquela forma, consagrada pelo tempo.
 Estava simplesmente sendo homem.

Arqueossência

 "...Um desejo jamais inteiramente realizado no ato de amar,
porque mesmo derretendo-se no outro pelo espaço de um
instante, a alma saberia, ainda que não conseguisse
explicar, que seu anseio seria completamente satisfeito."
O Mito dos Andrógenos

 Recordava-se. O que acontecera anteriormente? Sucessão de fatos ilógicos sem sentido. Ou seria  exatamente o contrário? Bem, não sabia. Recordou-se então.
 A visão. A determinação. A dúvida. A confiança. O desconforto. A desenvoltura, a confiança novamente. A aproximação, o contato. 
 Doses de adrenalina. Um suspense suspenso, sabia que entrara em um labirinto único, e isso duraria sua vida inteira. A descoberta de algo novo. O retumbar das valquírias nórdicas. As expressões artísticas das musas apolíneas em seu corpo. Estava em seu ápice .
 O contato. A sensação. Estava completo, tal como o fruto da união de Hermes e Afrodite, desde que estivesse naquele abraço íntimo onde cada parte de seu corpo encontarava um correspondente no outro ser, desdde que estivesse naquele abraço íntimo pelo qual vidas começam e poderiam vir a ser aniquiladas. As falas, ancestrais, repetidas por pessoas desde tempos imemoriais por pessoas imemoriais naquele mesmo instante. A falta da necessidade de promessas. O mundo perfeito, memso que por apenas nanosegundos. A sensação. O prazer. Nunca o sentira daquele modo.
 Terminara sua recordação. Olhara para a direita. Estava contemplando sua antípoda, sua representante do lado oposto. E sabia. Sabia, e tinha perfeita consciência disso, que provavelmente seria fogo aquilo, que seria eterno enquanto estivessem juntos mas que, inevitavelmente, apagaria, mas não se importava, pois tinha alguém que conseguia satisfazer aquele antigo desejo de completar o que estava incompleto. Tinha agora sua quintessência. Era corpo e alalma, mente e carne. 

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Ensaio

 Andava. Pra onde? Não sabia. Suas pernas a guiavam. Andava pela cidade que nunca a havia incomodado, tampouco agradado. Via, ouvia e sentia aquele mundo. Via os prédios, os mendigos, a poluição, uma tapeçaria negra e cinza. Ouvia as falas ancestrais, as críticas, as ofensas e as intrigas que alimentavam o mal humano. Sentia as monções humanas, formigueiro antrópico, ondas de náusea e calor que se avolumavam ao seu redor. E não se incomodava. E não pensava.
 E chegou. Ali, como um Eldorado verde oculto na selva de pedra e ferro. Uma fonte antiga, de águas esmeraldinas e uma estátua ao centro lembrando Hebe proibida de ceder seu líquido salvador às criaturas inferiores. Belos e bons bancos brancos figuravam ao redor do lago, todos esquecidos e desocupados pelo Tempo. Exceto um.
 Um cego. Com seu cão-guia alvíssimo, sem coleira. Coisas boas não precisam de nome para serem completas. Ela via-os. Talvez por instantes. Talvez por séculos. E eles levantaram-se e foram embora.
 E ela sentou-se no banco do Cego. Ficou ali. Instante? Sáculos? Não sabia. O importante é que agora via, ouvia e sentia. Via a sua cegueira branca. Ouvia sua surdez branca. Sentia a sua falta de tato branca.
 E um cão aproximou-se. E ele afagou suas mãos, seu nariz e seus olhos. E ela levantou-se com o cão, segura, comfiante, pensante. Nunca estivera tão certa, e tão bem acompanhada. Confortava-se com aquele cão e a sensação que sentira. Quais eram seus nomes? Não sabia. Coisas boas não precisam de nome para serem completas.

domingo, 17 de outubro de 2010

"A Última Refeição" ou "Amizade"

Vamos, estenda-me e dê-me tua mão. Antes, estenda-me e dê-me teu antebraço e depois teu braço. Permita-me servir-te de psicólogo quando estiveres em depressão, deixe-me servir-te de colunas e atlas quando ameaçares ruir, aceita-me para servir-te de mestre quando necessitares de ajuda, embora tu saibas mais que eu.
 Igualmente permita-me servir-te de arlequim quando alegre, deixa-me servir-te de sólida rocha quando necessitares de uma base e, finalmente, aceite-me para servir-te como ânfora para depositares tua confiança e de aluno para ensinar-me, embora eu saiba mais que tu.
 Vamos, estenda-me e dê-me tua mão, teu antebraço e teu braço. Guiaremo-nos mutuamentepor este caminho negro e íngreme, luminoso e suave. Não desespere-tes caso percamos tato. Não perderemos. Não desespere-tes caso percamos audição. Não perderemos. Não desespere-tes caso percamos visão. Não perdermos.
 Vamos, estenda-me e dê-me tua mão, teu antebraço e teu braço. Estarei aqui para ajudar-te a concluir O Pensador de Rodin. Estarei aqui a tentar evitar a morte da fênix e a incentivá-la e garantir que renascerá. Estarei aqui a ajudar-te a vencer Iago e garantir que ficará apenas Santo. Por fim, estenda-me e dê-me tua mão, teu antebraço e teu braço. Estarei aqui para ajudar-te a planejar, preparar, cozinhar, consumir e limpar esta última refeição a qual chamamos de vida.

Outro

 Mudara. E sabia. Sabia o quanto? A aparência? O pensamento? Os dois? Ou era uma impressão?
 Pensou em si no começo. Amizades? Nenhuma. Beleza? Nunca se preocupara com isso. Produto da alienação das massas. Inútil discutir isso agora.
 Mas mudara. O que teria feito isso? Lugar novo? Relações novas? Não sabia.
 No  primeiro, tudo igual. Amizades? Nenhuma? Beleza? Não se peocupara com isso. Exceto por isso ou aquilo?
 Segundo, tudo igual. Amizades? Exceto por esse, aquele, este e aquele lá, nenhuma. Aparência? Exceto por isso ou aquilo ou ou esse aí, não se preocupara.
 Terceiro, tudo igual. Amizades? Exceto por esse, aquele, este e aquele lá, tinha. Aquele sensação quente, iluminadora. Aparência? Exceto por isso ou aquilo ou esse aí, era bonito.
 E aconteceu. O fogo. O tremeluzir das luzes, mas via apenas as sombras. Apenas os demônios dançantes nas paredes. O que acontecera? Os demônios dançantes e cantantes e jubilantes. Tinha olhos apenas para eles. Mas ainda havia aquele corpúsculo brilhante.
 E vira. Estivera ali todo aquele tempo? Aquela fênix dançante e cantante e jubilante. Não Percebera, mas podia sempre contar com ela. Via. Sentia. Gostava. Mudara.
 Afinal, RENASCERA.

Mímico

Era mais um dia comum na Avenida Paulista. Carros, pessoas, ávores, prédios, mendigos, estruturas, praças, preto-e-branco, barulho, ordem pré-estabelecida...
 Até que apareceu. Um mímico. Branco-e-preto, toques de vermelho em uma obra bicolor. Uma manifestação física da metafísica, inesperada, diferente. no seu silêncio, imã da atenção barulhenta do mundo, executava movimentos com o mesmo afã daqueles que foram considerados loucos por ouvirem a música que a maioria não ouvia.
 Atraiu a massa. A massa que atraía a massa, em um ciclo sem fim. A massa hipnotizada, talvez encantada?
 Do modo que começou, acabou. Aquele ponto de insanidade (?) foi abafado pela sanidade. A ordem mantida.
 Onde eu estava? Era mais um dia comum na Avenida Paulista. Carros, pessoas, árvores, ´prédios, mendigos, estruturas, praças, branco-e-preto, silêncio, caos organizado...

Calvin & Hobbes - Bill Watterson

Calvin é um garoto de seis anos de idade cheio de personalidade, que tem como companheiro Hobbes, um tigre sábio e sardónico, que para ele está tão vivo como um amigo verdadeiro, mas para os outros não é mais que um tigre de pelúcia. De acordo com algumas visões, as fantasias mirabolantes de Calvin constituem frequentemente uma fuga à cruel realidade do mundo moderno para a personagem e uma oportunidade de explorar a natureza humana para Bill Watterson.













Bolo "Sociedade atual"

INGREDIENTES (massa)
- 4 xícaras de hipocrisia
- 3 colheres de intolerância
- 1 copo americano de fanatismo religioso
- 400 ml de vaidade, soberba, ira, luxúria, gula, avareza e preguiça previamente descansados
- 2 líderes influentes preocupados com seus próprios interesses
- 1 colher (chá) de utopia (opicional para dar impressão de sabor melhor)
INGREDIENTES (cobertura)
- 4 colheres de preocupação ambiental
- 1 órgão mundial que (aparentemente) serve ao mundo
- 2 xícaras de incentivo à cultura e educação
- 3 colheres de pluralidade étnica, religiosa, psicológica e física

MODO DE PREPARO
 MASSA: misture tudo e bata no liquidificador. Cuidados não são necessários. Acrescente ferozmente a hipocrisia para a massa crescer. Asse durante 5.200 anos.
 COBERTURA: cozinhe delicadamente os ingredientes para evitar desnaturações. Ainda quente, cubra a massa assada.
 Serve aproximadamente 8 bilhões de pessoas.

Mafalda - Quino

Mafalda é uma personagem criada pelo cartunista argentino Quino. É conhecida por ser preocupada com a humanidade, com a paz mundial e por se rebelar com o estado do mundo, além de ser considerada iracunda. Trago aqui algumas tirinhas, afinal, HQ também é cultura! ;D










Rosa

Vi ontem, ao alvorecer, uma rosa vermelha se abrir. Seria um bom título de livro sobre a Primavera dos Povos: "O desbrochar da rosa vermelha - o comunismo como doutrina no séc. XIX", como tão galantemente faria Drummond em sua Rosa do Povo. Ouentão seria interessante para abordar taxonomia em aspectos botânicos: "Efeitos do luar sobre o florígeno em Rosacea rosa". Ou quem sabe uma análise química seria atraente também: "A química do amor: ésteres e ácidos carboxílicos que encantam os apaixonados". Por que não uma tentativa literária? "Do Barroco a Augusto dos Anjos - simbologias amorosas envolvendo rosas". Talvez uma revolucionária: "A rosa negra da burguesia apenas servirá ao povo após tinta no sange da revolução". Ou então pensamentos geográficos, renascentistas, genéticos, computacionais, franceses, tchaikovescas, zoroatristas, machadianas, robespierrinas, vegetativas, ufólogas, comunistas, capitalistas, gastronômicas, físicas, radioativas, alienígenas, toxicológicas...  Ou simplesmente humana: vi ontem, ao alvorecer, uma rosa vermelha se abrir.