Entrou com ímpeto no santuário.
-SAIAM! SAIAM DO MEU CAMINHO, INSIGNIFICANTES!
As pequenas e delicadas criaturas aladas deram espaço ao revoltado ser que estava com pressa. Ele parou ao fim do corredor, diante das pesadas portas de pedra talhada.
-A clássica simplicidade – disse com desdém. Com um movimento de seus dedos as portas racharam e quebraram, e ele continuou o caminho até o trono.
-Lá vem ele, irritado novamente... – murmurou o senhor sentado no trono. – Quando foi a última vez? A Belle Époque? Ou o Entre guerras?
Os anjos que circundavam o velho fugiram à visão do indivíduo que vinha. Seu rosto contorcido de fúria desdobrou-se e voltou a ser a mais bela feição existente quando ele se aproximou do senhor.
-Lúcifer, há quanto tempo... – disse Deus gentilmente. – A que devo a visita, após anos sem uma grande manifestação da sua ira?
-Exatamente esse é o motivo, velho Javé. Vim lhe pedir que crie algo para que eu possa corromper.
-Entendo. Bem, vejo que o momento chegou. Finalmente sua presença é irrisória.
Deus levantou suas mãos. Ao unir o gesto com que acabara de ouvir, Lúcifer sentiu uma sensação que nunca experimentara: medo. Chegara a hora do Juízo Final?
Mas não. O Onipotente simplesmente criou três esferas de nuvens sobre os dois seres.
-Lhe mostrarei o quão insignificante você se tornou.
As esferas brilharam com a sequência de imagens que começara a passar. Era a história da humanidade, desde sua criação. Pararam subitamente, e a esfera da direita começou a passar cenas.
Um grupo de crianças estava à beira de uma fonte. Mas havia algo estranho. Ao invés de brinquedos, garrafas. Ao invés de roupas de dormir, saias microscópicas e camisetas que mal escondiam o corpo. Um caminhão apareceu e parou. Um homem puxou duas garotinhas para dentro. Gritos.
A esfera se desfez em vapor, e a da esquerda acendeu.
Bombas, morteiros, e tiros configuravam a cena. De um lado, soldados equipados com a mais moderna tecnologia bélica. De outro, homens usando pedras e paus para lutar, com um grito de guerra: “INTIFADA!”. A cena seguinte foi simplesmente uma carnificina.
Essa esfera também se dissolveu. A central refulgiu.
Dinheiro. Moedas, notas e fichas dançavam em uma ciranda sedutora, e homens e mulheres apossavam-se delas num frenesi sobrenatural, depois gastavam: roupas, jóias, veículos, jantares suntuosos, e finalmente desfilavam com os bens enquanto pessoas sujas, famintas e com as vestes rasgadas viam-nas.
A última esfera se desfez.
-Viu? Não creio que seus serviços sejam tão necessários agora. Acredito que não os são desde que Adão e Eva provaram do fruto do conhecimento. Criou seu próprio nêmesis, Lúcifer.
-Mas Senhor... minha existência é necessária! Como pode haver o bem caso não haja o mal para a comparação?
-Desculpe Lúcifer. Você desenvolveu uma máquina tão perfeita que te sobrepujou. Os humanos são uma fonte de maldade surpreendente, criados por mim, porém continuamente estimulados por você. Parabéns. Tente conseguir alguma função ao corromper algum futuro socialismo. Isso é, caso as nossas criações não façam isso mais rápida e eficazmente que você.