domingo, 24 de abril de 2011

Caim e Abel

 Entrou com ímpeto no santuário.
-SAIAM! SAIAM DO MEU CAMINHO, INSIGNIFICANTES!
 As pequenas e delicadas criaturas aladas deram espaço ao revoltado ser que estava com pressa. Ele parou ao fim do corredor, diante das pesadas portas de pedra talhada.
-A clássica simplicidade – disse com desdém. Com um movimento de seus dedos as portas racharam e quebraram, e ele continuou o caminho até o trono.
-Lá vem ele, irritado novamente... – murmurou o senhor sentado no trono. – Quando foi a última vez? A Belle Époque? Ou o Entre guerras?
 Os anjos que circundavam o velho fugiram à visão do indivíduo que vinha. Seu rosto contorcido de fúria desdobrou-se e voltou a ser a mais bela feição existente quando ele se aproximou do senhor.
-Lúcifer, há quanto tempo... – disse Deus gentilmente. – A que devo a visita, após anos sem uma grande manifestação da sua ira?
-Exatamente esse é o motivo, velho Javé. Vim lhe pedir que crie algo para que eu possa corromper.
-Entendo. Bem, vejo que o momento chegou. Finalmente sua presença é irrisória.
 Deus levantou suas mãos. Ao unir o gesto com que acabara de ouvir, Lúcifer sentiu uma sensação que nunca experimentara: medo. Chegara a hora do Juízo Final?
 Mas não. O Onipotente simplesmente criou três esferas de nuvens sobre os dois seres.
-Lhe mostrarei o quão insignificante você se tornou.
 As esferas brilharam com a sequência de imagens que começara a passar. Era a história da humanidade, desde sua criação. Pararam subitamente, e a esfera da direita começou a passar cenas.
 Um grupo de crianças estava à beira de uma fonte. Mas havia algo estranho. Ao invés de brinquedos, garrafas. Ao invés de roupas de dormir, saias microscópicas e camisetas que mal escondiam o corpo. Um caminhão apareceu e parou. Um homem puxou duas garotinhas para dentro. Gritos.
 A esfera se desfez em vapor, e a da esquerda acendeu.
 Bombas, morteiros, e tiros configuravam a cena. De um lado, soldados equipados com a mais moderna tecnologia bélica. De outro, homens usando pedras e paus para lutar, com um grito de guerra: “INTIFADA!”. A cena seguinte foi simplesmente uma carnificina.
 Essa esfera também se dissolveu. A central refulgiu.
 Dinheiro. Moedas, notas e fichas dançavam em uma ciranda sedutora, e homens e mulheres apossavam-se delas num frenesi sobrenatural, depois gastavam: roupas, jóias, veículos, jantares suntuosos, e finalmente desfilavam com os bens enquanto pessoas sujas, famintas e com as vestes rasgadas viam-nas.
 A última esfera se desfez.
-Viu? Não creio que seus serviços sejam tão necessários agora. Acredito que não os são desde que Adão e Eva provaram do fruto do conhecimento. Criou seu próprio nêmesis, Lúcifer.
-Mas Senhor... minha existência é necessária! Como pode haver o bem caso não haja o mal para a comparação?
-Desculpe Lúcifer. Você desenvolveu uma máquina tão perfeita que te sobrepujou. Os humanos são uma fonte de maldade surpreendente, criados por mim, porém continuamente estimulados por você. Parabéns. Tente conseguir alguma função ao corromper algum futuro socialismo. Isso é, caso as nossas criações não façam isso mais rápida e eficazmente que você.

domingo, 17 de abril de 2011

Acordo

-Então, me chamou aqui. Sou...
-Sim, sei quem você é. É Mefistófeles, o negociador. Seria ridículo chamá-lo e não conhecê-lo.
-Bem, não eu esperava por isso. Faz algum tempo que não sou invocado, devo ter perdido a prática...
-Não me interessa as suas reclamações. Pronto para os negócios?
-HAHAHAHAHAHAHAHAHA! O homem sem coração quer negociar! Aquele que exilou o filho e a mulher, admitiu a milhares a inveja que tinha do amigo e que quis enganar Deus tenta uma transação...
-Quieta, criatura subalterna! Se atendeu ao meu chamado é porque quer ter a certeza da posse!
-Bem, que seja. O jovem Fausto me pediu todo o conhecimento do universo. Centenas requisitaram dinheiro e fortuna. Milhares, a vida eterna. Milhões, a pessoa amada contra a vontade dela. E você, o que vai querer?
-Uma tudo e terá a resposta.
-Interessante. Então seus estratagemas de advogado não convenceram nem a si mesmo. Foi totalmente tragado pela ressaca.
-Prefiro dizer que fui hipnotizado pela cigana.
-Até aqui, às portas da morte, tenta se justificar, humano tolo! Não precisa dizer nada, ator dos subúrbios. A onisciência é um dom que possuo.
-Nesse caso, não me distraia mais. Dê-me a verdade! O que aconteceu realmente?
-Estranho. Deve ser uma característica humana querer o que é pior para si...
 O espectro se abaixou ao leito do moribundo e sussurou a verdade em seu ouvido. Palavras não seriam capazes de descrever o que se passou no rosto dele. Alívio? Tristeza? Confirmação? Felicidade? Ou talvez um misto de tudo...
-Ouvistes o que queria ouvir, Iago? Ou o Santo foi satisfeito? HAHAHAHAHAHA! O acordo mais divertido de todos!
-Ah, então é isso. Bem, aí vindes outra vez, inquietas sombras...

domingo, 20 de março de 2011

Estrangeiro

-Nossa!Você viu isso? Essa reportgem aqui?
-Qual, a sobre culturas? Dei uma olhada sim, por que?
-Você viu quantas tradições primitivas, arcaicas e ridículas há nos países? Tipo, você sabia que em certas tribos africanos as mulheres mais belas são aquelas que alongam o pescoço a ponto de pôr vários anéis nele? Os cientistas dizem que isso pode até matá-la, caso a mulher tire os aros...
-É, eu vi isso... só que tem outros ainda... por exemplo, uma certa tribo amazônica faz o rapaz maior de idade pôr suas mãos em potes cheios de formigas-de-fogo furiosas e aguentar a dor das picadas para provar que é homem já, e homens de outra tribo da Nova Zelândia pula de uma torre de mais de quinze metros presos por apenas um cipó, arriscando suas vidas!
-É... e sem falar em hábitos um tanto estranhos... que nem aquela mania hindu de não comer vacas e se lavar nas águas nojentas do Ganges, ou então a proibição judaica quanto ao consumo de carne suína. Eles deviam mais se preocupar com a guerra no país deles, e não com isso!
-Ah, e lembrei de mais uma coisa! E quanto às touradas espanholas? Hahaha, nunca vi um espetáculo tão deprimente! Principalmente nesses tempos de proteção ambiental e animal. E dizem que os países europeus são muito desenvolvidos...
-Ainda bem que nossa nação é desenvolvida! Vamos aproveitar isso e ver aquele desfile das modelos maravilhosas que temos, embora digam que elas têm uma certa doença psicológica lá... e falando em mulheres gostosas, sabe o que meu filho disse pra mim ontem? Ele foi numa “festinha”, haha, e conseguiu pegar geral sem camisinha! Agora eu posso chamar ele de homem!
-Ah, vamos. Vamos aproveitar que estamos perto do Natal, o nascimento de Jesus. Já matei tudo o que precisava para comemorar essa data linda! E que tal depois irmos à uma casa de strippers? Disseram que lá não há vergonha nenhuma...
-Nossa, é por isso que eu digo: nosso país é maravilhoso, principalmente quando comparamos nossos hábitos!

domingo, 13 de março de 2011

Black Swan

Inspirado no filme homônimo, Black Swan (Cisne Negro)

 Acabara suas tarefas, e agora sua mãe lhe deixara fazer algo pra distrair-se. Olhou ao seu redor. Por algum motivo (e custava para descobrir a razão) seus brinquedos de cinco anos atrás não a atraíam mais. Ligou a televisão então.
 Incrivelmente, havia apenas a mesma cena em todas as emissoras. Quer dizer, não a mesma, mas quando se trata de determinadas situações tudo acaba convergindo para o mesmo plano. Deveria, mas não queria para de ver. E viu.
 Depois encontrou uma pena negra no chão.
 Dias depois, saiu com suas amigas. Foi engraçado. Todas sedutoras, impertinentes, independentes, e ela ainda infantil, subserviente e sob os cuidados da mãe. Igual a uma ave. Mas ali não queria saber disso. Se divertiu, as amigas lhe “ensinaram” a seduzir, dançou um a dança nunca dançada antes, com movimentos impensados e hipnóticos, bebeu não apenas o líquido de Dionísio como também a bebida dos russos e outras mais. No fim da noite, suas companheiras lhe parabenizaram.
 Depois encontrou um pequeno amontoado de penas negras na mesa.
 E continuou experimentando novas sensações e ações que sempre haviam sido proibidas pelos seus pais anos e anos e anos a fio.
 E após a conclusão de cada ato, encontrava amontoados de penas negras no chão.
 E finalmente começou a pensar. Em tudo. Sobre tudo. Do porquê de tudo.
 Por que a sociedade prega a subserviência? Apenas os que obedecem estão certos? Será que é para garantir a ordem?
 Talvez esse não fosse o motivo. Pessoas que desde pequenas são submissas são mais fáceis de serem controladas depois, por aquelas figuras tããããããão respeitosas e respeitadas. Na verdade, essa obediência hereditária acaba sendo uma preparação para o meio de alienação do povo. Alienação, criada sem querer nas famílias para ser muito bem recebida na sociedade conservadora religiosa.
 Encontrou uma asa negra em seu braço.
 Por que todos dizem desejar a castidade, a inocência? Por que todos acabam sendo hipócritas ao valorizarem uma coisa, mas quererem realmente outra? Por que todos exibem socialmente uma imagem à qual seu verdadeiro eu não condiz?    
  É estranho realmente. Todos erram. Mas todos acabam escondendo seus erros. Acaba até sendo engraçado como muitos homens dizem querem casar com uma mulher virgem, mas se dedicam ao máximo para conseguir fazer sexo com o maior número de pessoas possível. É cômico ver que durante o dia a mídia exalta o puro e o intocável, mas à noite muda sua posição e passa músicas, histórias, e agora até um filme sobre uma garota de programa, vejam só. Chega ao ponto de divertido. Todos elevam o Cisne Branco às maiores altitudes – apenas para depois matá-lo e adorarem ao Cisne Negro.
 E encontrou o Cisne Negro no lugar de seu corpo.
 Agora estava certa. Completa. Perfeita. Era quente e frio, luz e sombra, pureza e sedução. Era agora o Cisne Branco e o Cisne Negro, sem a hipocrisia social.
 Agora ela estava louca. Agora ela pensava.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Por quem os sinos dobram

 Adentrou no recinto. Recinto sagrado, sua simples existência concedia paz a quem existia. O sino, sobre a abóbada, acima de todos, angariava novos fiéis, instantes atrás mortais pecadores, mas agora religiosos perfeitos, para mais uma mostra pública de virtude.
 Compareceu, viu, ouviu e absorveu obedientemente os desígnios divinos milenares transmitidos através dos sacerdotes formados pela vontade humana. Ouviu os sinos novamente. Som símbolo da religiosidade.
 E acordou. Ou entrara em transe? Aquele som místico já usado em várias outras ocasiões sacrossantas, como os címbalos dionisíacos, lançou-lhe em uma teia reflexiva.
 Desde sua juventude aceitava subservientemente a dose semanal de ração espiritual oferecida por aquelas respeitáveis figuras de branco. Sentia-se bem com isso.Bem até o dia seguinte, quando o Caos tomava forma agressiva e investia. Com isso, entrava em erupção, um Vesúvio que não poupava qualquer pessoa – exceto as figuras de branco, curiosamente. Estariam elas protegidas por um pálio divino?
 Lera o livro dito “livro das verdades”. Incontestável. Quem duvidaria, por exemplo, que aqueles puros ascendiam ao Paraíso (ou deveria dizer Elísios?) enquanto os condenados passariam a eternidade nas profundezas?Mas claro, sempre haveria o constante perdão do Deus não vingativo, concedido pelas importantes figuras de branco.
 E ainda havia outras questões nas quais as figuras brancas figuravam como protagonistas. Idade Média. Medo. Erros improváveis da Instituição. Medo. Pragmatismos imutáveis, pensados para o bem de todos. Medo.
 Mas havia a questão. Na realidade, por quem os sinos dobrariam? Pela divina figura da bondade e amor ou às terrenas figuras de branco?